terça-feira, 23 de março de 2010

Faísca

Ela acordou depois que o raio de sol atravessou a persiana da janela e arranhou suas pálpebras. A escuridão dos olhos fechados ficou vermelha e tão belo era o calor da cor que ela deixou-se estar.
Mas logo teria de levantar-se. O dia era quente e coisas havia para queimar, acender e restituir das cinzas.Muitos desejos apesar da chama restrita, comandada como um maçarico a fazer remendos...
Questionava-se. As respostas desvaneciam como fumaça no ar dos bares, monóxido de carbono nas ruas.
Saiu.
Caminhou.
Até que viu um homem e sentiu os olhos exatamente como quando acordou, flagrando incêndios interiores e nada de fora além daqueles olhos.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Frio e Rígida




Dada à rigidez, ela não encontrava companheiro. Isto não era ruim, havia o frio para cobri-la quando, à noite, ela sentisse falta de alguém. Frio logo se tornara o seu parceiro.

Como boa namorada que era logo teria de reservar espaços na sua casa para a chegada do mais novo amante. Ao pé da cama, um par de chinelos esculpidos no piso, roupão com a inicial F bordada em azul. Pra esperá-lo, banhos gelados e nudez em pleno inverno.

Ocorre que o tempo propiciador das núpcias passou, e o calor da nova estação lembrou-a de que as compressas e o ar condicionado não a livrariam do triste reconhecer-se viva, e ser de calor. Mas amava-o e havia decidido: iria à Sibéria.

Lá se rendeu como jamais, ou como sempre havia desejado, embora ela não contasse com o fato de que a morte sacramentasse a união.

Congelada, concubina.

Só?

Uma crônica.



Hoje é 28/01/2010
Um dia bom.
Amanheceu chovendo e uma das coisas que mais gosto de ouvir, ao acordar ou dormir, é o barulho da chuva.
Ouvi 'Fina estampa ao vivo'. Liguei para o museu e soube que o artista Francisco de Almeida estaria lá. E até lá fui.
Não encontrei ninguém na parte administrativa do lugar: todos estavam no hall principal preparando a gravura de 20m (ou mais?) de comprimento que o Francisco fez e que havia sido exposta no Rio Grande do Sul há pouco tempo. Logo ela seguiria para São Paulo, por isso ficaria apenas até dois dias sob a custódia do "Mestre Pedro". Ao ver a gravura e o criador dela, tão frágil e trêmulo, percebi que a força criadora de Francisco o expandira e vi o quanto eu era pequena, mas gloriosa em meu deslumbramento.
Ele me pediu a bolsa. Eu, atrapalhada pelas digressões, deixei cair seu celular. Já estava me sentindo inútil quando ele, precisando caminhar até a outra extremidade da sua obra sem poder fazê-lo sozinho, me pediu o braço. Prontifiquei-me honrada e incerta de como ajudá-lo, mas então pensei:"Agora eu posso ver como é ser artista". Isto porque o peso dos movimentos de Francisco, por mais descoordenados que fossem, faziam saber que os seus passos ansiavam ser da velocidade de sua vontade. Sua energia agravava seu desequilíbrio físico a ponto de eu mesma esforçar-me para andar normalmente. Constatei que Eugênia era forte e haveria de ter pés de fincar o chão para andar com Francisco como eu já pudera ver: ereta e gentilmente altiva. Neste dia, ela não estava lá e Francisco enfrentava os percalços do dia, tristonho. Ainda havia um jornalista, que olhava as obras do museu apertando os olhos, como se fosse um míope. Se ele não o fosse, deveria estar temendo a própria superficialidade, pensando demais para não perder (ou pôr a perder) a matéria... teve de curvar-se para cumprimentar o artista. Estendeu a mão e falou com uma educação áspera, petulante. Francisco apertou sua mão ainda sentado no chão -- nada como a dignidade...
Pouco tempo depois: "Nataly, por favor..." E eu disse:"Não quer pegar minha mão para apoiar melhor?" E ele ajustou-se, mas eu ainda não podia com o pequeno ...
Tenho muito o que aprender.